.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

16/03/2024

alzheimer

 



 

nunca controlei a boca

nem a alma

nem a dor

nem a ira do pensamento

mas se um dia me perder

se o nome destapar

se a memória lascar

se do amor deslembrar

se escambar o dia e a noite

o bem e o mal

abracem-me

segredem-me o vosso nome

não me deixem partir sozinho

 

 

[para os meus filhos]



mais um dezassete. mais um março. mais um ano – já passaram vinte e seis anos que o vosso avô partiu sozinho. envolto no branco do hospital. sem que ninguém pudesse acompanhá-lo no adeus. sem que uma mão o conduzisse ao céu – ano após ano. e sem que a saudade desvaneça.  esse dia repete-se incessantemente em mim. é uma chaga que nunca fechará – viverá enquanto eu viver já que nenhuma absolvição serenará o meu pesar – faltou uma última palavra em sua casa. nossa – um último beijo. nosso – e um até sempre. nosso – tínhamos ficado em paz. nós todos

 



12/03/2024

por ser o que sou - II

 




II. o paradoxo de olbers


“*há sempre um grande arco ao fundo dos meus olhos... a cada passo a minha alma é outra cruz” – que posso então esperar de mim agora que o arco do tempo está a achatar e a cruz que carrego a pesar? construí-me em dúvidas. e com elas produzi medo. ausência e silêncio – será que a origem das dúvidas reside numa racionalidade que lhes é exclusiva e autônoma? será que com a idade as dúvidas tendem a tornarem-se mais complexas? será que com a idade preferimos não ter dúvidas e encontramos respostas na religião. no ateísmo. ou no universo? não sei. como não sei uma imensidão de coisas. mas acredito que com o envelhecimento precisamos cada vez mais de nos de nos conquistar definitivamente. de nos conhecermos com coerência. de nos amar incondicionalmente – envelhecemos. e começamos então a catar as dúvidas morfológicas e anatómicas. estas com prioridade. e uma a uma. com cuidados de cirurgião. dissecamo-nos. expomo-nos. libertamo-nos do medo. mostramos o que somos. nada mais do que o que somos – tal como antigamente as mães catavam piolhos nas cabeças dos seus filhos e os exterminavam unha contra unha. também eu cato as minhas dúvidas. mas não as extermino. aprisiono-as. acorrento-as ao que me sobra de lucidez. injeto-lhes aceitação. suportação.  e também conformação. afinal são as minhas dúvidas. geradas e criadas em mim – nietzche dizia que devemos ter o caos dentro de nós para dar à luz uma estrela dançante. eu já sou um caos. mas no lugar das estrelas tenho as dúvidas a dançar sobre mim – as dúvidas sufocam-me. desesperam-me. magoam-me. mas estou cada vez mais certo de que não seria o que sou sem elas. sem o seu caos. sem a sua energia interrogativa. e também sem a crueldade com que me levam à desesperação para me encontrar com o que sou hoje – só não tenho a convicção de que alguma vez levarei todas as minhas dúvidas à certeza. velejo águas sem fronteiras. aflitas. angustiadas. bem sei que sempre foi assim. e o que nasce em dúvida. tarde ou nunca será certeza – nesta forma maldosa de viver. inventada por mim para que a ausência se faça o mais tarde possível. vivo a verdade que sou a cada noite. e quando o sol range. e a mentira regressa. percebo pelo tino que me resta que nada em mim é certo. viver o que não sou é um castigo só compensado pelas dúvidas que alimentam a noite – sem dúvidas seria um monstro. um vegetal. um ser inanimado. uma pedra pendurada num penhasco à espera de uma rabanada de vento – tal como olbers. também eu quero acreditar que se a minha mente fosse estática e repetitiva. nunca teria conseguido construir-me assim como sou. talvez se me aplique o mesmo princípio do seu paradoxo – as minhas noites são escuras. frias. solitárias. imersas em dúvidas. em dor. e o corpo de um lado para o outro. da cadeira para o tártaro. da cama para o tártaro. de mim para o tártaro. e do tártaro para dentro do que não quero ser. e o corpo inchado de coisas inúteis. enorme. como se tivesse prenho de umas quantas vidas. quase todas dispensáveis. quase todas sem valor de mercado – o meu corpo é um género de tabopan. um aglomerado de dúvidas prensado pela vida que me suporta. e também pela minha parca sabedoria. cheio de incertezas e medos. sempre a procurar um fim. e elas a nascer sem ordem e saber. e eu a perguntar: porquê? são minhas por quê? talvez a resposta seja são minhas porque são. ou talvez porque me fazem expulsar o que não sou. para tentar ser o que quero ser – *“o homem é a única criatura que se recusa a ser o que é” e este eu. quase invisível. e que habita dentro da ausência. medo e silêncio. não precisaria mais do que um caderno de linhas para se tornar parte das coisas reais – nestas noites embrulhadas em dúvidas e mistérios. a única companhia que suporto é o conhecimento que não tenho. o de mim também. e que me faz procurar nas incertezas o que sou. porque sou. ou o que poderia ter sido se… e mais se… e mais se… e mais se… mesmo sabendo que o se será sempre uma equação com resultado infinito e variável – mas mesmo este resultado imperfeito. está sujeito a vários tipos de contaminação: se crescermos em família ou com amigos. se estarmos sós ou acompanhados. se é noite ou dia. se temos fé ou descrença. se temos dúvidas ou certezas. se vivemos na terra ou na lua. a invisibilidade que sou. e que acredito ser genuína. é a minha impressão digital. o meu nome. a antimatéria reconhecida por todos que me rodeiam – sendo invisível não existo. resisto no meio de quem é visível – quero acreditar agora. com o meu calendário em quarto minguante. que sou o que posso ser. e nunca serei mais do que isto que escrevo. e também sei que serei muito menos para os que me leem – mas depois. obstinado. procuro soluções. e mergulho nas dúvidas. às vezes como se fossem um chá quente reconfortante. outras. fico em nada. desintegro-me molecularmente. e crio um novo paradoxo: e se a minha invisibilidade fosse de tal forma gigante. do tamanho do universo. não fosse finita. nem estática. e todo o conhecimento que sei existir em mim. sendo pouco. mais as dúvidas. sendo muitas. porque não há saber sem dúvidas. fosse uma fonte limpa de produção de energia. sendo a invisibilidade o seu combustível. reproduzida assexuadamente. sem necessidade direta da minha inteligência. sendo assim capaz de produzir os seus próprios interesses. os seus próprios desafios. os seus próprios medos. as suas dúvidas. isto é: eu. assim como sou – a minha invisibilidade é a minha força. mas **“o meu pensamento sou eu: é por isso que não consigo parar” – construí o meu universo escuro. que mais não é do que o meu quarto de pânico. e que tal como uma ventoinha eólica apenas precisa de vento para produzir a sua energia: eu preciso de invisibilidade para resistir ao que sou – e eu. invisível. que nada produzo para além de energia interrogativa. a respirar contradição dolorosa. morro para adormecer. morro para que o vento não chegue à eólica. e quando o tártaro me regurgita. acordo para viver – é esta energia. esta força invisível. que aceito como minha por ser feita do meu pensamento. que me faz nascer renovado com a luz. e morrer com o escuro. e enquanto não faleço de vez. resisto a todas dúvidas com mais dúvidas – nenhum homem. mesmo feito de nada. pode descansar se não tiver um interruptor para as suas assombrações. uma mão que se despeça da mente e nos faça falecer em calmaria. porque enquanto está falecido não quer saber se o sol nasce ou não. se o pecado existe. ou não. se a estrada é certa. ou não. se o amor por mim é verdadeiro. ou apenas a ferramenta para me manter vivo – olbers fabricou um paradoxo para o universo. eu fabriquei um paradoxo para mim: porque quero viver se é a morte que me ilumina os dias? bem. não tenho certeza. talvez porque é no conhecimento da mortalidade que encontramos clareza sobre a vida – a morte é apenas o nada imortalizado. continuar vivo é sempre uma opção. a não ser que fosse tetraplégico. ninguém nos proíbe que nos atiremos de um himalaias.  ou que sufoquemos com um nó de amor. ou nos enrodilhemos num oceano. é sempre menos custoso falecer do que viver – sempre que o sol desaparece unge-me saudade. e tal como um samurai se prepara para a batalha. também eu me dobro sobre a terra que me suporta e honro os pais da minha luminosidade. e mesmo que esta honra não lhes traga glória. e não sabendo eu se a alma é eterna depois de perder o corpo. enquanto resisto às dúvidas terrenas. acredito que o nome que me deram não foi em vão – mas confesso. gostava de saber que dúvidas são estas que me levam ao nada. pois mesmo que o amor me sobre em cada pegada. e o desejo de caminhar se prenda às pernas. e o destino a soma de todos os passos. sei que sou o que vivo na terra das vontades. e que me faz ser o que sou às vezes não sendo. e mesmo que um dia me falte a estrada. mesmo que a curva seja eterna. é o meu nome que perdurará em cada pegada que inventei – descobri no escuro das minhas noites a luz que me ilumina a vida – procuro a minha verdade. o que presta e o que não presta em mim. tal como nos pede miguel torga no seu poema. quantos seremos



Quantos seremos?


Não sei quantos seremos, mas que importa?!

Um só que fosse, e já valia a pena.

Aqui, no mundo, alguém que se condena

A não ser conivente

Na farsa do presente

Posta em cena!

Não podemos mudar a hora da chegada,

Nem talvez a mais certa,

A da partida.

Mas podemos fazer a descoberta

Do que presta

E não presta

Nesta vida.

E o que não presta é isto, esta mentira

Quotidiana.

Esta comédia desumana

E triste,

Que cobre de soturna maldição

A própria indignação

Que lhe resiste.



*mário de sá-carneiro 

** albert camus

***jean-paul sartre


09/03/2024

por ser o que sou - I

 






I - insignificante


às vezes sinto que já faleci. fecho os olhos e as dúvidas iluminam um corpo já quase sem vida. e a mente infinita e elástica a explodir de medo – por cada fantasma uma razão para não querer abrir os olhos. por cada dor a certeza de que ainda estou vivo – a luz natural desaparece. as lâmpadas tomam o seu lugar. iluminam o que está ao seu alcance. e resisto. nada mais posso fazer. estou demasiadamente fragmentado para brigar com o escuro – conto as estrelas. uma a uma. e por fim. e por desespero. deito-mo… fecho os olhos… e faleço para tudo que me faz viver. e a cada amanhecer ressuscito para tudo que me faz morrer – no escuro sinto-me sempre tão insignificante. sem nenhum castelo para guardar. sem nenhuma cadeira para me sentar. sem nenhuma certeza para as dúvidas que me subtraem a noite – pé ante pé. adentro para a caverna das impossibilidades. tudo é confusão. medo. terror e morte desonrosa – mesmo assim. sobrevivo quando fecho os olhos… e morro quando os abro – a vida é um desafio. às vezes indecente. às vezes injusta. às vezes imoral. às vezes quase mortal. às vezes apenas com um pequeníssimo estímulo para adiarmos para amanhã o que já não suportamos hoje – é o destino que nos calhou em sorte. ou por mérito. ou por demérito. e um dia. sem mais adiamentos. finamos por um mandamento interior que não podemos desrespeitar. é como um impulso elétrico. um punhal que nos espetam de certezas. uma oração que nos perdoa de todos os excessos e pecados. e tudo o que era dúvida é agora uma oferta num embrulho irrecusável: paz para sempre – e enquanto esperamos por esse mandamento. por aqui ficamos. a respirar devagarinho para que ninguém nos ouça. a viver aos pouquinhos. a resistir porque o seu contrário é covardia. a soletrar o nosso nome baixinho. a marcar dias no calendário para assegurar que fazemos parte do mundo sensível – é quando tomamos o silêncio como o último amigo. tudo o que for dito no desespero da noite pode tornar-se letal com o nascer do dia – adiamos as dúvidas. as promessas. as orações. o vento às gaivotas. adiamos tudo até que o corpo não possa mais dizer: quero falecer – quando acordo. mesmo insignificante. mesmo a valer nada. dou como certo a chegada de mais uma noite. mais uma ameaça ao siso. e sofro. e a dúvida é se o meu padecimento é resultado da minha essência. ou das escolhas que realizei por vontade – não sei. como poderia saber? mas para cada desafio diurno terei o que sempre tive. audácia e esperança. talvez por ser insignificante. e não caber em mim mais nada – e para cada himalaias apenas um passo para a frente. e a certeza de que dor besta só me vencerá se o cume não alcançar – se não fosse insignificante não haveria himalaias. as montanhas existem para pessoas como eu: pensam. escrevem. desenham. pintam. traçam bissetrizes até ao princípio do mundo. remexem o passado para nada mudar. e no topo da minha capela sistina. uma cabeça tão miserável que confúcio nunca me teria aceitado para seu aluno – resta-me resistir. pensar para existir. pensar para não falecer – a minha noite está em oposição à infinitude da mente. é como se o medo abstrato. filosófico. ou metafísico se tornasse real. como se tomasse o corpo e o mergulhasse em ácido. e o medo do amanhã. que é meu por direito próprio. me corroesse os ossos e me desfizesse em prantos – insignificantes. bem sei – que mais poderia ser do que prantos insignificantes? creio que nada – escondo-me na escuridão. preciso e amo as noites. à noite ninguém me vê. ninguém sabe quem sou. ou o que faço. à noite sereno-me. procuro-me. procuro também as dúvidas. e para cada uma. mais mil a trabalharem em mim. todas impassáveis. todas a fazer dor. a fazer terror. e a única certeza dentro desta devastação. são dúvidas a parirem mais dúvidas. e por fim. descarnado. desesperado. depauperado de qualquer riqueza emocional. apenas uma certeza: amanhã tudo será pior? e eu. falecido ou não. com dor ou sem. com perdão ou sem. caio definitivamente no meu abismo. e faleço por uma vontade que não pode ser contrariada. como se tomasse uma espécie de cicuta que me faz falecer no escuro. e depois. com o nascer do dia. ressuscito para poder morrer novamente – mas no dia em que morrer de vez. quando viajar para outro espaço sem dor e medo. sei que o mundo acordará exatamente igual. nenhuma estrela no céu confiscará o meu nome. nenhuma luz na terra alumiará a minha falta – já não tenho mais prantos. já não tenho mais nenhum dote que me permita comprar uma vírgula para mudar a história. terei que viver com dúvidas. e com a minha preciosa insignificância. assumir o que sou. mesmo não sendo nada – a vida é um voo para morte. é como se me tivesse atirado de um arranha céus há mais de 50 anos e andasse estes anos todos à procura de um local para cair – não se morre com o impacto. morre-se com a vontade de chegar ao solo. porque a morte física é apenas ausência e silêncio – escrevo. escrevo sentimentos confusos. incluindo amor. morte. felicidade. alegria. tristeza. medo. raiva. incompreensão. e para cada um deles um palavrão: que se foda – quando um homem falece. nada do que fez tem valor se não durar mais do que um minuto. eu não deixarei nada que valha mais do que um minuto – quando um homem falece nada do que fez tem valor se as bocas não falarem de dor. eu não deixarei nenhuma obra em razão da dor – quando um homem falece. nada do que fez tem valor se o sol não fizer sombra. eu cresci envolto em nuvens – mas o que posso fazer se desistir não for solução? mesmo que o vento me cegue o caminho. é na vontade de desistir que me nomearei cavaleiro. e darei [comigo] o primeiro passo para a frente. mesmo que o meu nada tema medrar. mesmo que o meu nada peça para não sofrer. pois estou certo. que um dia. alguém me há de explicar o que sou. e porquê sou – quem caminha sozinho vai mais rápido. mas quem caminha acompanhado. vai com certeza mais longe. clarice lispector – eu vou com certeza chegar mais longe. caminho comigo. e com todos os eus que carrego de nascença. e somos tantos. a falar. a dar opiniões. a dizer vai por acolá. para logo outro dizer. é melhor por ali. mas que posso fazer se todos são importantes. e de todos fiz caminho – confesso que não sei. já me habituei a não os questionar. não quero compreendê-los. o que quero mesmo é chegar mais longe. porque há coisas que não queremos saber. às vezes ser. e ter também. mesmo que seja um dom divino. ou escolha do universo. o melhor mesmo é continuar insignificante. vestir-me de louco. e viver pendurado numa janela. quem sabe um dia ganho asas e passo a viver nas árvores. na natureza. na minha natureza – quando um ser insignificante falece os sinos não dobram. nem choram. nem gritam. acenam. e dizem sorrindo: já vais tarde. finalmente noites sem dúvidas – estou certo que mais tarde. ou mais cedo. aprenderei a contar os meus eus. a catalogá-los. e pedir-lhes que me nomeiem. eu. sampaio rego. fiel depositário. e único herdeiro das suas vulnerabilidades. dores. desgraças e insignificâncias – nós. queremos muito acreditar que é possível ir mais longe – e termino esta primeira parte com um poema de agostinho da silva. in “poemas”

 

SONHO

 

Teria passado a vida

atormentado e sozinho

se os sonhos me não viessem

mostrar qual é o caminho

 

umas vezes são de noite

outras em pleno de sol

com relâmpagos saltados

ou vagar de caracol

 

quem os manda não sei eu

se o nada que é tudo à vida

ou se eu os finjo a mim mesmo

para ser sem que decida.



06/02/2024

destino







todos os corpos são gaivotas. vivem pousados em vento. o destino é feito pelo tamanho das asas - in. retalhos – número de série 27042012s(r)ego02

 


21/01/2024

tuning II e III





 


II.

as palavras deixaram de ser irreverentes. aceitam-me. e acomodam-se no lugar que lhe disponho. como se eu e elas fizéssemos parte de um banquete. e nos sentássemos à mesa. em família – quem nos lê não quer fast-food. quer um banquete de gala. requintado. luxuoso. elegante. sob holofotes. quer estar no centro de todas as atenções. quer os homens de smoking preto. sapato verniz. e camisa branca ornada com laço papillon – as senhoras de vestido justo. preto. de lantejoulas. salto alto de agulha. uma echarpe suave a tapar os ombros nus. e no colo do peito a maior esmeralda verde já alguma vez regurgitada por uma rocha – na mesa. o início da degustação gourmet. carne maturada ao tempo da arte. acompanhada por letras salteadas em perífrase. com alto teor de metáforas e hipérboles. tudo regado com um néctar de apolo – ao fim destes anos. vinte e cinco não é pouca coisa. as palavras tornaram-se divertidas. já não se mostram enfezadas. falam comigo. respeitam-me. insinuam-se. nenhuma quer ficar fora da história. tornaram-se mais tolerantes. sabem que não foi fácil artilhar o carro para chegar até aqui. mas agora. às portas de um novo genesis. querem mais. querem mais papel. querem mais conhecimento. mais arte. mais definição – eu também quero. mas o medo. essa coisa tantas vezes abstrata. essa dor que nos espreita por detrás de cada palavra… e nos magoa sem piedade – como se escrever pudesse merecer castigo – um escritor. por mais mau que seja. vive atormentado. o seu mundo está coberto de nuvens e homens maus. e ao fim da jornada. quando apagamos a luz. as palavras saem de nós para alimentar os demónios. e ali ficamos. em alerta. de espada na mão protegendo a nossa honra. evitando que alguma seja levada para o inferno – não há escritor que não tenha tido um motor partido. uma bomba de água entupida. os fusíveis queimados. e palavras atravancadas no nó da garganta – e o domar de letras petrificado. preso ao seu tártaro. ajoelhado. a pedir a são judas tadeu. o santo das causas impossíveis. que o proteja dos demónios críticos – a vida de quem escreve não é fácil. mas não mudaria uma vírgula do caminho que percorri. mesmo sabendo que não estou isento de imprecisões – mas se ficasse por aqui. se não escrevesse nem mais uma palavra. diria que já não foi mau. caminhei com o que sonhei. e a cada nascer do sol encontrei-me para ser um pouco melhor – nem tudo foi mal-acabado. eu e as palavras amparamo-nos. rimos juntos. choramos juntos. andamos por dicionários juntos. perdemo-nos juntos. viajamos juntos para lá das nuvens. às vezes até acampamos em estrelas e cometas. e as metáforas e hipérboles a nosso lado. ajudando-nos a criar ilusões. para não falar no sujeito poético que. com a mania de dizer tudo o que lhe apetece. escapa sempre às responsabilidades – foi uma viagem e tanto. bem sei que sempre exagerei com as figuras de estilo. mas que posso fazer contra isso. estavam mesmo à mão. e a mão daquele que escreve é incontrolável – ser escritor é um sacrifício medonho. só quem realmente gosta de contar histórias é capaz de sobreviver a vinte e cinco anos de anonimato – escrevi. e ainda hoje escrevo para não ficar doente. para sobreviver a este mundo terrível que sufoca a minha cabeça. e que todos os dias me atormenta com a vida de verdade. e tudo faz para que desista de procurar a cura pela estrada do papel – escrever é uma viagem alucinante. às vezes acreditamos que estamos a trabalhar para uma obra de arte. e dentro da nossa cabeça assim é. e no outro dia. despois de umas horas de sono. olhamos para o papel e interrogamo-nos: quem foi o monstro que escreveu esta trampa? e ali ficamos mortos. quase sem respirar. a perguntar se vale a pena continuar. e vamos buscar aquele bocadinho de forças para o momento em que estamos no cimo da ponte. entre o escreve. e não escreve. desiste. não desiste. e voltamos ao princípio. renascemos no caus. e mais uma vez com a esperança de que quando atingirmos o ponto final. nos sintamos geniais – e o medo instalado. a interrogar-se. será que não consigo chegar a um escritor de verdade? as palavras cada vez são mais exigentes. e às vezes não as sei entender. saber até sei. mas não consigo domá-las como desejava. é como se estivesse num fórmula 1.  com mais de mil cavalos selvagens a puxar por mim. e eu sem mãos para tanto power. para tanto cavalo bonito

 


III.

mas o que sei. e desta vez sei mesmo. será em 2024 que me tornarei pela primeira vez pai de um livro. finalmente escritor – não um livro qualquer. não. será o meu livro. o meu best seller. com a minha impressão digital. a vida escrita em papel. sem adornos. sem falsidades. sem imposturices. com honestidade emocional. intelectual também. sendo apenas eu em cada momento desse eu. às vezes no escuro. às vezes no nada. a soletrar o nome para não me perder. para não me esquecer. a lascar pedra – sem este outro eu. sei. agora. que não escreveria uma única palavra. não curaria nenhuma dor. não perdoaria nenhuma falha. não encontraria nada em mim que valesse a pena fazer existir. a mesmidade seria para mim uma doença incurável – o tempo passou. rápido creio eu. precisava de outro tanto para me tornar mais nobre. mais respeitado – veremos do que serei capaz – as palavras são sempre tão difíceis. tão desgastantes. tão rigorosas. sempre a imporem acompanhamentos diferenciados. exigentes na escolha dos ingredientes. alguns exóticos. outros raros. que desconheço. ou não sou capaz de trabalhar. – talvez queiram batata brava. e uma saladinha com todos. vinagre balsâmico e duas pedrinhas de sal a gosto – o meu livro será a gosto. a meu gosto – espero que a gosto de todos aqueles que me leem

 



15/01/2024

andam por aí





Não vou aos cemitérios porque não está lá ninguém

e ao perguntar-lhe

– Então estão onde?

o Bento fez aquele sorriso que lhe enche a cara toda, explicou

– Andam por aí.

e, de facto, andam por aí. A minha mãe anda por aí, o meu pai anda por aí e fartamo-nos de nos cruzar com eles, só que às vezes, distraídos, não damos por isso. Eu para o Bento

 

antónio lobo antunes


eu digo mais.

a minha cunhada zeza anda por aí

o meu sogro joão anda por aí 

o meu tio joão anda por aí

 

 

10/01/2024

tuning






 

I.

será que atingi a maturidade a escrever? será que a idade sénior me protegerá de escrever tontarias? não sei. gostava de ter uma bola de cristal. mas não tenho – a minha dúvida é que seja uma espécie de automóvel tuning. que vai sofrendo alterações. às vezes para parecer mais bonito. noutras. mais competitivo – comecei por aparelhar umas jantes mais largas. para me amarrar melhor às palavras; depois. abri um teto para mais facilmente ser ouvido quando peço perdão; não satisfeito. meti dois faróis xénon para não me voltar a enganar no caminho – medroso. alterei a suspensão para aguentar os solavancos gramaticais. e para me defender. comprei um rádio com colunas a debitar 1000 decibéis. às vezes precisamos de calar o mundo – por último. mandei apetrechar dois “bofantes” cromados para impressionar. tipo carro de corrida. mas que não corre para lado nenhum. faz barulho por ter o escape roto – lembro-me do dia em que comecei a acelerar. e fui pela vida da escrita. ganhando coragem a cada passo. a cada quilómetro feito de passos. e um dia distraí-me. e quando olhei para o conta-velocidade tinha ultrapassado os cem quilómetros horários – que loucura. vidro aberto e aquela sensação incrível do vento a misturar-me o léxico. as palavras a esvoaçar. e o cérebro em êxtase aos gritos de aflição. anunciando a todo momento a fusão de um punhado de vocábulos. o nascimento de um grande texto – o ponteiro do velocímetro a trepar incrédulo pela potência. o cabelo a imitar os braços do boneco da michelin. e os óculos ryban. a sorrirem para o retrovisor. e os lábios a sublinhar suavemente o pensamento: nada do que escrevi merece recordação. para a frente é o caminho – vivia um tempo feliz. excêntrico. acreditava que um dia deixaria de ser carro tuning e passaria a um avião de combate. um F16 – depois. passei os cento e vinte. e comecei a olhar para trás à procura da brigada. e a perguntar-me. será que algum critico literário ou apenas leitor. mandar-me-á parar? talvez um dia aconteça. é inevitável. quem anda à chuva molha-se – mas o que me preocupa não é a chuva. é se um desses entendidos me disser: -- o cavalheiro fica sem carta definitivamente. é um perigo para a arte. o melhor para si. e para todos os que gostam de ler. é confiscar-lhe o lápis. obrigá-lo rapidamente a parar de escrever – continuei a acelerar. e a escrita cada vez mais em pânico. sempre que passava por um radar sorria. ficar bem na fotografia é o desejo de todo escritor – sorrindo talvez apanhe apenas uma contraordenação primária. uma advertência. ou trinta dias de suspensão – quando escrevemos tornámo-nos vaidosos. e acreditamos piamente que um dia podemos ter uma pontinha de sorte. e quem sabe. tornarmo-nos no melhor escritor da nossa rua – palerma. estou farto de saber que a sorte dá muito trabalho – no entanto. a ingenuidade alimenta a criança que teima em viver no meu corpo adulto – continuei a acelerar. quem não gosta de andar depressa com as palavras? encosto aqui. para-choques a raspar por ali. arranhão acolá. mas sempre a teimar. pensava para mim: enquanto não capotar o caminho é para a frente – comecei de triciclo. virei de pernas para o ar centenas de vezes e nunca desisti – depois. passei para a bicicleta. e as marcas de lamber o alcatrão cravaram-se-me no corpo. mais uma vez recusei resignar – agora. que tenho quatro rodas. um travão servofreio com sensores ABS. cinto de segurança em diagonal. e airbags duplo frontal. também não vou abandonar as palavras – passaram vinte e cinco anos. as palavras estão mais maduras. eu também. já não estou tão vaidoso. e na minha simplicidade. quero acreditar que atingi a velocidade do som. claro que ainda não sou F16. muito menos um foguete capaz de me levar ao espaço. mas labutei-me muito por dentro. afinei-me para corridas trabalhosas. acredito que um dia chegarei a um paris-dakar – não sei. mas que importa. chegarei onde tiver que chegar – também aprendi a colocar o ouvido nas palavras. e agora ouço o seu trabalhar. como quando o médico coloca o estetoscópio sobre o coração. e diz: -- respire fundo – e máquina a trabalhar ao ralanti. num batimento certo. e as palavras a trabalhar dentro dele. e eu com as mãos ansiosas por mais prazer. com as palavras presas às pontas dos dedos. excitadas. os dedos também. e no cérebro hauser a tatear um noturno em dó sustenido menor de frédéric chopin. e o papel branco a desenvolver-se. a sonhar com uma história de amor correspondido. a oferecer-se ao escritor

 


31/12/2023

ora aí está 2024!

 







chegou o momento de me despedir de 2023 – fazendo o somatório deste ciclo de 365 dias. experimento que foi um bom ano. tive saúde. pessoal e profissional. e principalmente. tive família e amigos por perto – que mais um homem pode desejar? quanto ao vil metal… não recusaria um pouco de mais bondade. sei que sou um privilegiado neste mundo antagónico: guerra e paz. fome e abastança. habitação e desabrigados. saúde e doença. solidão e família. mas creio que não pecarei ao desejar mais uns trocos. seria como a última pincelada numa obra de arte. assinatura de autor para alindar um pouco mais a minha ambição – em boa verdade. não me posso enfadar com nada. este ano. já moribundo. foi uma boa casta. tive sol na eira e chuva no naval. e em nenhum momento foram diametralmente opostos – ficar-lhe-ei grato pelo que me deu. pelo que me ensinou. pelo que me fez crescer e fortalecer – que o novo ano traga consigo o melhor de 2023. e o que me sobrou em preocupações que fique esquecido para sempre – precisamos honrar o que já vivemos e receber o ano novo com alegria e esperança – faço votos para que 2024 adote a minha família e amigos com muitos sorrisos. paz. saúde e esperança – mas não podia celebrar a virada do ano sem lhe implorar um cuidado especial para um amigo também especial: para o meu prezado H. muita saúde. muita saúde. muita saúde e muita resiliência. cá estaremos a torcer por ti e por quem te acompanha todos os dias – bom ano 2024



24/12/2023

feliz natal para todos!






 


o natal sempre me envolve em sentimentos doces. suaves e nostálgicos. há nele algo adormecido em mim – contra este cocktail de sensações nada posso fazer. e mesmo que pudesse. também não o faria. gosto desta overdose de bem-estar. deste encanto hipnótico que o natal transposta em mim desde criança – é a minha festa. a festa da minha família. e na noite da consoada compartilhamos não apenas o bacalhau. mas também amor. compaixão. e generosidade – celebramos a existência de uma linhagem. o calor dos amigos. e todos aqueles que. por um motivo. ou outro. cruzaram nossas vidas – mais do que tudo. celebramos principalmente o modo como gostamos uns dos outros. como lhes dizemos o quão são importantes nesta nossa passagem terrena – é entre gorros vermelhos e bolas coloridas que compreendemos. mais facilmente. que pertencemos uns aos outros. independentemente dos laços sanguíneos que nos unem e nos trouxeram até aqui – neste dia de união familiar. recuperamos um dos maiores milagres de jesus. a ressurreição – reencontramos o meu pai. a minha mãe. a zeza. o meu sogro. o tio joão. todos retomam seus lugares à mesa. vieram consoar connosco. confortar a saudade que nos deixaram – o natal sem eles não seria o natal das boas tradições; eles são parte de nós. e nós somos parte uns dos outros – e agora. que soem as doze badaladas. e que o espírito generoso do pai natal toque os meus netos. toque em todas as crianças deste nosso mundo maravilhoso – o verdadeiro natal é aquele onde reside a inocência – feliz natal para todos!



22/12/2023

parabéns

 




um dia. como todos aqueles que corajosamente se aprontam a nascer. vou desaparecer deste mundo. espero que por velhice. por arrasto da bengala. incontinência urinária. ou de coração melado de tanto amar a minha companheira – neste dia especial. em que nasceste para mim. quero-te a meu lado… hoje. e até que o último suspiro me surpreenda – ver-te envelhecer é ver-te todos os dias mais bonita – e assim. em atrição. e sem coragem para contestar a veracidade que um dia tombará no meu epitáfio. peço a deus. ao universo. ou à sorte. que me conceda uma última vontade: quando chegar a minha hora. que o meu silêncio aconteça nos seus olhos. e eu. finalmente. possa descansar na sua eternidade – parabéns maria joão


19/12/2023

abençoados




 


olho-te

em câmara lenta

e o amor à velocidade da tua luz

e aqui

quase no fim do mundo

entre o oito e o oitenta

entre o rio e a distância

entre o coração e a multidão

o belo

 

mas amor

permite-me este instante

teu… e meu

deixa-me proclamar

ao universo

que hoje é um bom dia

para morrer dentro de ti

 

que seja então agora

entre o teu sorriso e o meu destino

entre os teus olhos e os meus lábios

entre a tua luz e os meus anéis

que os teus braços me entrelacem

e me levem para o cimo das nuvens

ou de um arranha-céus

e quando o coração parar

que na saudade medrem asas

 

pairar sobre ti

é outra forma de te ter

 

 

foi em québec que tive o impulso de escrever este poema – o castelo frontenac pendurado nas margens do rio saint laurent. a luz. as sombras. a história. a amizade dos nossos amigos. nawel e michel. mas principalmente. sentir os olhos da maria joão acesos de paz. como já há muito tempo não sentia – foi uma viagem de sonho que guardamos e agradecemos para sempre – em québec também fomos abençoados



29/11/2023

absurdo





nada das coisas que imaginei morreu em mim porque o tempo das coisas não é de quem pensa. mas sim de quem faz – ainda quero fazer milhentas coisas. mesmo que sejam absurdas – a felicidade e a tristeza alimentam-se do pensamento. mesmo absurdo – penso. logo sou absurdo – utopia é acreditar que um dia todos os meus absurdos o deixarão de ser – nunca recusarei ser o que sou. mesmo que o absurdo em mim possa parecer loucura




24/11/2023

eu. a vidinha. e os amigos

 







[tratado sobre amizade]

 

I.

o que seria da nossa vidinha sem os amigos? sinceramente não sei. sempre tive os amigos perto de mim. a ocuparem espaço. a absorver-me. a falarem muito. e eu também. a ocupar muito espaço. a absorver. a falar. a acenar para trazê-los para dentro do que sou e sinto – com a idade vamos perdendo amigos. amigos ou coisa parecida. encostos. passageiros do nosso tempo sideral. almas com mágoa e dor. como eu – destes amigos. alguns apenas dormitaram de um dia para o outro. e pela manhã. fizeram um café forte e partiram em expresso – outros. estalaram-se. depositaram o corpo em mim. e obrigaram-me a ficar fiel depositário.  e ali fiquei. com as mãos estendidas. como deve um amigo ser. presente. para evitar males maiores. ou que se aborrecessem. ou partissem. afinal os amigos são coisa fina. cristal de murano – mas o tempo é ruim. e tal como o cometa halley. alguns destes amigos seguiram viagem. é a vidinha. talvez apareçam daqui por setenta e cinco anos. serão bem-vindos se tiverem boas razões para voltar. e muitas histórias para contar – os amigos são assim. humanos como eu. às vezes precisamos de partir. precisamos de abalar para local desconhecido. para ser como somos. para ter tempo para ser o que realmente somos – mas. enquanto nos escondemos na vidinha que nos tocou. sim. porque às vezes não temos escolha. precisamos do escuro para clarear ideias. procurar o que demos por perdido. aprender a escutarmo-nos. aceitarmo-nos. limar as complexidades com uma pequeníssima lima de manicure. os amigos abalam. e quando voltamos do escuro já não temos ninguém à espera – a vida corre sempre para a frente. para a invisibilidade. e o que ficou para trás não passa de nevoeiro. igualzinho ao de d. sebastião. acreditamos que um dia tudo volte a ser como dantes. não volta. como não voltou d. sebastião – depois. ainda há os amigos intermitentes. aparecem e desaparecem consoante o que lhes convém. ou os humores. ou as tragédias. e chegam como se nunca tivessem partido. a sorrir. a dizerem que a vidinha é uma trampa. que o tempo é como as enguias. escorregadias. e abraçam-nos até os ossos estilhaçarem. juram saudades que são quase dor. e convencem-nos que no canto do seu olhinho reluzente. a ramela é verdadeira. sobra da última lágrima. que depois de bem seca. se faz cristal. possivelmente também de murano – com o tempo fui perdendo amigos. ou coisa parecida. mas quem não os perdeu? só não os perde quem nunca teve o privilégio de os ter – crescemos e tomamos caminhos diferentes. é a vidinha. digo eu agora que já não encontro razões para tanto desencontro. a juventude envelheceu. passou a sénior. o corpo amadureceu. a memória enfezou. as mãos aceitaram os tremores. o coração bate e esbate. e o céu ficou mais perto de belo – agora. neste estado de pré-decadência apressada. mais complacente. mais sabedor de que nada sei. encontro outros entendimentos. mais nobres e mais rebuscados. acertados com mais predicados. o corpo roga mais tolerância e menos ego. e finalmente. percebemos que os amigos vivem na arca do nosso santo graal. com a família. e guardam em si todos os seus mistérios. como eu – o que mora dentro de cada um dos nossos amigos apenas pertence a um só corpo. e só esse corpo conhece e sabe as verdadeiras razões da sua viagem – como disse agustina bessa luís. o mistério da vida cumpre-se em cada homem de uma forma única – é a vidinha – envelheci demasiado. quando quero lembrar-me de mim. com o corpo esguio. e o cabelo a cair para o lado dos sorrisos. tenho que me procurar nas fotos. e fico sempre espantado. e interrogo-me: este sou mesmo eu? parecia passado a ferro. lisinho. as pontas dos pés acertavam-me em cheio no nariz. e os lábios sempre prontos a falar. às vezes a desatinar. quando ficavam excitados anunciavam bom tempo. com as gaivotas a saírem-me do céu da boca. loucas. e o vento… sempre a puxar sul. acompanhado de um aroma suave. fresco. e a pele eriçada. arrepiada com um mundo redondo. azul. com mares. com alma. sol e sal. e o pulôver atado à cintura a desafiar o outono. o meu outono. era um miúdo com uma vidinha gira – e eu sem saber quão rápido chegam os outonos. ingénuo. é a vidinha. não apenas a minha. mas a de todos – mas enfim… é o que é. consola-me saber que os meus amigos também envelheceram. fizeram-se das suas razões. tornaram-se no que quiseram ser – as histórias de amigos acabam sempre com um final feliz. ou quase sempre. as que acabam mal existem para nos obrigar a ter cuidados redobrados. cada amigo tem um mundo que é só seu. tem o seu mistério – o tempo coloca tudo no seu lugar. acerta as horas pelo fuso de cada um de nós. e depois. aparece aquele momento. que relembraremos para sempre. principalmente nos desequilíbrios. nas noites mais cumpridas. nas dores invisíveis. em que nos tornam eleitos. únicos. diferentes das maiorias. que é quando nos dizem: és um bom amigo. especial. singular. e sorrimos tímidos e envergonhados. estranhamos. mas depois entranhamos. e obrigamos as gaivotas a sair da boca. pedimos-lhes que levem a boa nova ao mundo. e ficamos em festa. gratos. encantados com o que somos. e esquecemos por mais um século o que gostaríamos de ser – os amigos são a nossa rosa dos ventos. e o norte aponta sempre para eles. para eles e para a família – a felicidade não é assética. mas é quase sempre efémera. às vezes ilusão. às vezes apenas o contrário de dor. que acabamos rapidamente por a rejeitar. medramos só de saber que está a caminho de nos encontrar – para cada segundo feliz sofremos horas de agonia. foi assim a vidinha. não foi feita para nós. não somos dignos de a saborear por um ano. um mês. um dia. temos apenas direito a momentos felizes. espremida apenas de pensamentos joviais. em noites de auto-satisfação – é como vestir umas calças com dois números acima. se não usamos cinto. caem-nos. se colocamos cinto. encarquilham. num caso. ou noutro. ficamos em dúvida se engordamos. ou emagrecemos. e acabamos por preferir a neutralidade. nem feliz. nem infeliz. usamos um número intermédio. e tudo encaixa na perfeição. é o número mágico. faz-nos invisíveis. assim. ninguém nos pergunta se está tudo bem. ou mal. estamos sempre com ar de nem oito. nem oitenta. às vezes quase mortos. às vezes na lua. mas aos olhos da multidão. está tudo legal. como sempre – enquanto a infelicidade que infligimos aos outros. digo. aos amigos. fica para sempre. e quase todos os dias vem à memória o dia do pecado mortal. arrependemo-nos. laminamo-nos. sangramos até à exaustão.  mas a vidinha não anda para trás. e em dor e fogo tatuamos na pele três palavras: és uma vergonha – e quando estamos sozinhos. apenas connosco. vestimos uma túnica branco. e tal como egas moniz. ajoelhámo-nos. entregámo-nos em perdão. e ali ficamos à espera que a cabeça nos caia nas mãos. com os nossos olhos. nos olhos dos amigos – não se pode virar as costas a um amigo de olhos no chão – agora. as gaivotas já não me passam pelos lábios. penduram-se como morcegos no céu da boca. a degustarem o meu refluxo estomacal. e o verme do tempo a mastigar a vida num vagar tonto e esquizofrénico – finalmente absolvido. mortal. finalmente todos mortais. todos perdoados. eu também

 

 

II.

mas que importa isto. ou aquilo. o que sei é que comecei a caminhar onde o passado me criou. e às vezes passo pela rua que me viu nascer. e tento encontrar-me. e não me vejo. desapareci daquela rua para sempre. ou fiquei invisível. e por mais tentativas que faça para me encontrar. não me encontro. a vidinha é isto. uma ilusão de eternidade. e o que nos espera é uma sucessão de pequenas mortes. que nos faz desaparecer aos bocadinhos. e um dia. sem nada pudermos fazer. desaparecemos para sempre – como eu. os amigos. desapareceram por culpa da vidinha. tornaram-se invisíveis. e quando tentamos recuperar a sua face. já não conseguimos. esfumaram-se na vidinha. ficou-lhes o nome. que viverá enquanto eu viver. e depois. também um dia. quando eu expirar. quando as gaivotas me morrerem na boca. e o verme saltar para a terra. morremos todos para sempre – a vida corre desenfreada para o fim. para o pó. e nesta correria parva espera-nos a invisibilidade. a minha. e a dos meus amigos – e a rua onde eu nasci. será a rua de um outro como eu. que perderá amigos como eu. e envelhecerá como eu. e tornar-se-á invisível como eu – é assim que o mundo gira. é a sua vidinha – às vezes desistimos da vida e ainda respiramos. estamos fartos de perder coisas: perdemos os sapatos de pele que nos custou uma fortuna.  perdemos o avião para veneza. perdemos o nascer do sol. perdemos a chave de casa. perdemos tempo. e logo logo perdemos a esperança. e a honra. e a dignidade. e a calmaria que nos faz esperar pelo nosso dobrar dos sinos – pedimos então suicídio. e é quando nos perdemos de nós. do caminho que sonhamos. e metemos a mão à boca para deixar de respirar. e ouvimos o verme a agoniar. e as gaivotas loucas na escuridão a cravarem-se nos dentes. e as lágrimas que nunca serão cristal de murano caiem-nos em cima da verdade. cristalizam-nos – cristalizam-nos na verdade absoluta – não somos nada. somos apenas passageiros da vidinha – e a saudade de todos os que amamos a passar pelos olhos ainda abertos. em desespero. numa agonia brutal. e aos poucos vamos sufocando. e a morte acontece na sua imperial simplicidade – é o fim da vidinha. único acordo de cavalheiros apalavrado com o primeiro sopro de vida: um dia morrerás e serás para sempre invisível – é a vidinha – envelhecer nem sempre é castigo. envelhecemos para termos a última aula de saber. começamos a respeitar o tempo. aprendemos a amaciá-lo. a torná-lo num chá quente. reconfortante. e percebemos que enquanto respiramos é nossa obrigação juntar as moléculas e marchar. meter as esporas nos pés. deitar o corpo sobre a vidinha. como um jockey se deita no seu cavalo para que o galope alongue. e partir desenfreado pelo o que nos resta de tempo. conquistá-lo com dignidade. atingir a meta com honestidade – por minha culpa. tão grande culpa. às vezes creio que também sem culpa. para cada amigo que ia conquistando. perdia três. às vezes perdia uma mão cheia de uma assentada. e nem um me chegava em troca – pensava. é o êxodo. castigo de deus ou do universo. ou então. iam em busca da sua vidinha prometida. que mal lhes posso ter por quererem a sua vidinha – com o meu outono chegaram os novos amigos. mais compostos. mais parecidos comigo. mais doces. a falarem de coisas mais adocicadas. talvez porque também eu me tornei mais meloso. mais cuidadoso com as portas que abro. culpa da vidinha. ou da minha falta de maleabilidade – a plasticina ao tempo fica rija e impossível de trabalhar. e posso confessar-vos agora. já não me trabalho como antigamente. agora prefiro escrever e abraçar os amigos mais certos. os que me tocaram por gosto – não foi de propósito. foi a vidinha. outonos em demasia. amadureci. como se fosse um fruto. talvez um morango. ou uma laranja. ou a maça do paraíso. que estupidez. como é que algum dia poderia ser um fruto. petrifiquei-me. e mesmo abrindo a boca e espantando as gaivotas. não fui suficientemente bom comigo. não me perdoei. às vezes perdoo-me. mas muito devagarinho. suportando-me. serrando os pulsos – sem dor não há perdão sentido – mas confesso. ainda não consegui desfazer-me do amargo da vidinha que fui esbanjando – infelizmente. nem sempre vento e liberdade são sinónimo de envelhecimento com estima

 

 

III.

os amigos são como elevadores. apanhámo-los na vidinha. e rapidamente os convidamos a subir ao último piso de nós. chegados lá. sem custo. animados pela conquista. ainda fazemos questão de subir mais uns degrauzinhos. queremos chegar mesmo ao topo. para o céu nos escutar sem esforço. e para terem uma vista real da nossa magnitude. e logo dizemos: estás a ver tudo isto à tua volta. é tudo meu. é o meu pé-de-meia da vidinha – a amizade é uma forma de amor. e tudo o que é amor é lei universal. augusto comte. fundador da sociologia moderna. escreveu um dia o seguinte: “o amor por princípio. a ordem por base. e o progresso por fim” – por princípio os meus amigos. são aqueles que se predestinam a sofrer a meu lado. para sorrisos nunca me faltou espaço no relicário – os meus amigos sempre foram os meus heróis. eram todos aquiles. guerreiros. poderosos. inteligentes. bonitos. apenas pequeníssimas debilidades nos calcanhares. por serem aquiles. presentes nas horas más. sangrando comigo. chorando. agoniando. apoiando. dizendo-me: amanhã é outro dia. acredita – os meus amigos são a minha poesia épica. a epopeia da minha vida. da nossa vida – eles e a família são o meu anel de fogo. que me protege no tempo. que é a minha vidinha. e que por ser escassa e trabalhosa. acabou tresmalhada nos seus enredos – na nossa vidinha não há grandes possibilidades de voltar atrás para refazer o destino. o que nos em calhou em sorte. ou desnorte. ou então sou uma experimentação de deus. ou extraterrestre. uma ordem do universo. com o rótulo: experiência 17552. do ano estelar -41296.36. o que está feito. feito está – é por isso que os levamos para o último piso. que é o mesmo que lhes oferecer um sofá para dentro de nós. sentamo-nos nas telhas. algumas de vidro. que são o calcanhar de aquiles. e mostrámos-lhes como tudo é fantástico. damos-lhes o melhor do que gerámos. escondendo o nosso buraco para o inferno – e depois do barulho. quando o silêncio nos despe. humildes. falamos-lhes da nossa pequeníssima vidinha. sem interesse. nebulada. escura. fria. e irritante – somos o que somos. independentemente do que nos rodeia – apontamos para uma árvore. uma que está mais acima do que as outras. talvez com as folhas mais verdes. talvez também mais elegante. e apenas dizemos: olha que árvore bonita. que bela. e olha a cor. e o tamanho das folhas. tão geométricas. tão certas. tão perfeitas – procuramos o belo-estético onde não existe mais do que apenas o belo de uma árvore. igual a tantas outras. e que não servem para mais nada do que para poiso de pássaros – e as minhas gaivotas presas ao céu da boca. incrédulas por tanta louvação e esplendor. a interrogarem-se para que servem tantas árvores se lhes falta um mundo redondo. azul. com mares. alma. sol. e o sal – um dia. estas árvores tornar-se-ão também invisíveis. apodrecerão. ou acabarão nas mãos de um marceneiro. nada fica para sempre. nem a água da chuva. nem o vento. nem o amor. nem os olhos que o veem – respiramos o belo como se estivéssemos drogados com tanta afinidade. como dizia miguel torga: daqui se vê o belo absoluto – olhamos um para outro e interrogamo-nos: o que há dentro de nós de tão mau para nos darmos tão bem? quando gostamos de um amigo perdemos o nosso vento sul. e as gaivotas voam de olhos fechados. afinal o mundo é azul. com mares. alma. sol e sal – olhamos ao redor e todos as árvores são especiais. e todas diferentes. umas mais pequenas. encorpadas. mais esguias. e até as atarracadas te seduzem. e dizemos em uníssono: um dia serão enormes – interrogamo-nos. porque são as árvores tão esguias? e concordamos: para se protegerem do outono. das intempéries. dos ciclones. dos dias frios. e do gelo da vidinha – mas um dia. se tiverem sorte. darão uma credência d. maria às mãos de um marceneiro – que final feliz para uma vida – e ali ficamos. dias a fio a olhar a imensidão das árvores. a imensidão do futuro. o infinito. a contar credências d. maria. a viver a vidinha. a sorrir. a ser um bocadinho felizes – depois. e como a maior parte dos amigos que levamos para o nosso terraço. deixam de ver árvores. e o céu desaparece. agoniam no nosso belo absoluto. cansam-se. arfam. bocejam. arrotam a fim – é a vidinha – os amigos não passam de humanos com as suas vidinhas. iguais a todos os humanos. mas diferentes de mim. não por não ser humano. mas por razões que desconheço. ou conheço e não compreendo. o que sei. mesmo não sabendo explicar. é que num instante absoluto. ou não. aos seus olhos. às vezes também aos meus. o belo falece. e um deserto supremo emerge. é como se de repente estivéssemos acampados no saara. e o desespero do fim amarra-se à vidinha que ainda sobra. como a areia ao vento – agora. eu e alguns amigos. ou coisa parecida. percebemos que as árvores afinal não são tão altas como pareciam. e as credências d. maria. não passam de bancos saloios de três pernas – é quando entra em equação o tempo. essa coisa que muda tudo. transforma o novo em velho. as ideias geniais em ideias parvas. o pensamento positivo em negativo. e o belo… num susto – começas a centrifugar-te. cada vez com mais velocidade. numa circunferência descoordenada. e percebes que o que era belo já não é assim tão belo. afinal a grande maioria das árvores nunca serão credências. nem bancos de três pernas. serão somente árvores. nada mais do que árvores – juntas eram uma floresta. sozinhas não são nada. talvez quase nada. porque mesmo sozinhas não deixam de ser árvores. existem. mas mais tarde. ou mais cedo. serão lenha seca. é a sua vidinha. e ao fim de cada dia. o sol desaparece por detrás de cada uma delas. desaparece para todas. para mim também – e cada um de nós guarda o seu universo. mais nosso. e deles também. tão nosso. e deles também. que apenas nós. e eles também. o compreendemos – começamos a preferir-nos. a querer mais para o que somos de verdade. nem que seja um dedal de felicidade. um sorriso que dure mais que um instante. que cavalgue pelo tempo. anunciando a boa nova: chegou a idade do saber – mas se for mentira. que nos engane com classe. e nos faça acreditar até que o último suspiro caia por terra. com o verme – percebemos que em qualquer vidinha somos únicos e fantásticos. é altura de apostarmos em nós. ganhamos coragem. e assim fazemos. metemos então as fichas todas no tempo que nos falta viver. e cruelmente. deixamos de querer compreender as outras vidinhas. e dizemos: é a vidinha – voltamos a ficar sós. como árvore. podíamos ser uma floresta. mas não somos. somos apenas nós com a nossa vidinha – metemo-nos novamente no elevador e começamos a descer. primeiro apenas um andar. depois outro. às vezes dois de cada vez. e em cada um dos andares deixamos sair amigos que connosco subiram ao topo do belo absoluto – é quando começamos a contar os amigos que perdemos ao longo da nossa vidinha. e percebemos como é cruel. alguns não gostaram do meu terraço. das alturas. outros deixaram de gostar de árvores. e outros não gostam de nada. nem de si. é a vidinha. digo eu – e eu a interrogar-me: porque estão tão longe de mim? juro que não sei. a mim parece-me que estou sempre mais perto deles – o que sei. palavra de honra que sei. é que os meus amigos de verdade estão mais perto do céu do que eu. são especiais. mais tarde ou mais cedo todos serão credências d. maria. é a vidinha – a minha grande interrogação é porque não fui capaz de os manter a todos no topo do meu edifício. não pode ser culpa só deles. eu também me devo ter perdido com a vidinha. talvez por acreditar que nunca seria uma credência d. maria – é a vidinha. mas esta vidinha. esta minha vidinha. interroga-me todos os dias: porque raio é que vivo num edifício tão alto? se vivesse mais perto do chão tudo seria mais fácil. abria a janela e todos aqueles que me quisessem conhecer só teriam de espreitar. e mesmo que não gostassem das quinquilharias que carrego. podiam sempre ir passando. porque afinal estamos sempre a mudar de quinquilharias. e quem sabe um dia. passavam com outros olhos. noutra vidinha. e até talvez parassem para conversar. e falassem um pouco da sua vidinha. e eu falaria da minha. falava-lhes do desejo de um dia ter uma credência d. maria em casa. para por ao lado de um banco saloio de três pernas – mas é a vidinha. feita de caminhos que nos cercam por todos os lados. e ali andamos como se fosse uma ilha. com o nosso oceano de árvores. e de outras coisas que por serem muito nossas. guardamos em buracos que são o inferno. protegidas por fantasmas. guardiões do calcanhar de aquiles – e agora. neste caminhar vagaroso. percebo que poucos ficaram na minha vidinha. mas os que ficaram. os que vivem em mim. sei bem porque os amo. porque todos eles são credências d. maria – não quero mais portas a abrir e a fechar. quem entrou é cristal de murano. é para segurar de mãos abertas. é para nos sentarmos no sofá e apreciar o belo absoluto. amaciar os silêncios. enganar o verme. e libertar definitivamente as gaivotas. as minhas e as deles – e se por acaso o tempo se fizer mau. se chegar uma borrasca. abro as janelas para que o vento me limpe as lágrimas das ausências – sei agora que a culpa da vidinha que escolhi é minha. só minha. e com ela. um dia. me tornarei invisível – mas agora também sei. que não posso perder mais ninguém. tenho o corpo lotado de campas e saudade

 

16/11/2023

chegar até aqui







foi uma trabalheira gigantesca chegar até aqui – mas cá estou hoje. a falar livremente e sem medo. porque quando alguém ler estas parvoíces que escrevo. será passado. e o passado nunca mudará o futuro. só o presente tem essa dinâmica. e é por isso que escrevo. hoje. este meu presente. que fará o meu futuro mais compreendido


 


21/10/2023

13/10/2023

in: vulnerabilidades








“mais do que descobrir o que deixei para trás por causa das minhas vulnerabilidades. importa-me saber o que posso mudar para a frente – o futuro é sempre mais importante. é lá que um dia morreremos. e é bom manter a gaveta arrumada. nunca sabemos o dia em que apanharemos a barca para outra dimensão” – in vulnerabilidades